quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pequenos Contos - Parte 3


Uma Mentira leva à Outra

Eu disse para os meus filhos que o cachorro fugiu, mas eu menti. Ele era um vira-lata adorável e eu me senti mal por isso, mas ele estava sempre brincando na floresta e voltava sujo depois de rolar no esterco. Eu fiquei de saco cheio de dar banho nele e ficar tirando carrapatos e nós dos pelos. A última vez foi a pior. Precisei usar minhas tesouras pra tirar uma quantidade absurda de folhas, lama e cabelo emaranhado.

No meio disso tudo eu encontrei um dedo. Bem, eu não podia deixar isso acontecer de novo, certo?

Afinal eu já tinha dito para as crianças que a mãe deles havia fugido.






Incompleto

Você está andando por ruas estranhas, a caminho de uma festa de aniversário do amigo de um amigo seu. Você está atrasado e meio perdido. Já está escuro, e lâmpadas mal conservadas nas ruas iluminam muito pouco para serem um conforto. Você ouve um barulho – um ruído seco. Talvez uma raposa derrubando um vaso, ou um galho se quebrando sobre o próprio peso. Você olha para trás, repentinamente paranoico. Nesse momento, eu respiro pela primeira vez, de forma fraca e áspera. Você sente um calafrio com o ar gelado, e nesse momento eu respiro novamente.

Seu coração bate mais rápido, só um pouco, e isso me dá um pulso que bate ao mesmo tempo que o seu. Você começa a esquadrinhar cada sombra, subitamente cauteloso, e isso me dá olhos para te enxergar, te encontrar. Você murmura pra si mesmo, tentando se tranquilizar, e isso me dá uma voz. Com alegria, eu coaxo na noite, e você dá um pulo de susto. Você começa a andar mais rápido, e isso me dá pernas para te perseguir. Apesar dos meus passos serem leves, você parece sentir minha presença, e começa a correr. Meus passos se tornam mais pesados, mais sólidos, até que eu tenha certeza de que você possa ouvi-los. Você olha para trás uma última vez, e me vê. Incompleto e sombrio como eu estava, você tem medo de mim, e isso me faz forte e faminto. Você grita pela última vez, e isso me dá dentes. Você cai no chão e eu estou sobre você. Do seu medo, eu nasci. Da sua carne, eu me alimentei pela primeira vez.






O Sacrifício

“Vai ser pacífico”, ele nos garantiu. “Um de vocês vai embora agora, quietinho, e o outro fica aqui... comigo.” Seu sorriso sádico revelou dentes amarelados. Eu me senti enojado mas sussurrei, sem hesitar: “Eu fico”. Ela chorou e implorou pra se sacrificar e me salvar. Ele não disse uma palavra enquanto a levava embora.

Eu não sei quanto tempo se passou naquele porão frio e escuro. Me senti paralisado com o terror, temendo o que ele faria comigo. Dias devem ter se passado. Quando eu finalmente ouvi as escadas rangendo, lenta e deliberadamente, eu fiquei aterrorizado e totalmente estático. Finalmente eu conseguia vê-lo, e ele estava carregando algo... era ela, ele estava a carregando. Ele a colocou no chão à minha frente e eu corri em sua direção, somente para recuar com repulsa assim que estava perto o suficiente para tocá-la.

Ela estava fria e rígida. Seu pequeno e delicado corpo estava todo machucado e ensanguentado. Seu rosto tinha apanhado tanto que um dos olhos estava praticamente fechado pra dentro. Os dedos dela estavam cortados e a maioria das unhas havia sido arrancada. Eu olhei para ele horrorizado, com uma pergunta inexprimível em meus lábios. Ele olhou de volta e deu de ombros. “Eu menti”, foi tudo o que ele disse, enquanto dava as costas para os meus gritos e subia as escadas.



quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Conto de Robert Elm - Parte I


As luzes no horizonte de Seattle se iluminaram de repente, como se a cidade ganhasse vida com os sons e imagens noturnos. Em um bar sujo, um homem solitário está sentado em meio ao zumbido de uma lâmpada florescente no teto, segurando seu uísque com mãos trêmulas. O homem é um enigma. Ele aparece no Spade normalmente às 22h e vai embora pouco antes do amanhecer, e pede sempre a mesma coisa (uma dose grande de uísque irlandês). Nunca fala nada muito diferente de “O de sempre...” um ou outro grunhido ou resmungo, e é praticamente uma sombra para todas as outras pessoas. Para os frequentadores, esse homem é um ninguém. É um reles mendigo que ficou sem sorte e se entregou à bebida, como muitos antes dele. Entretanto, para aqueles que o conhecem, seu nome é Robert Elm e ele tem uma história a contar.

A noite estava chuvosa e a neve caia. O Spade, normalmente cheio de gente, estava deserto, exceto por Robert. Ele se sentou em seu lugar de costume. Mesa nos fundos, à esquerda, de frente com a parede. Debruçado sobre sua bebida em completo silêncio, exceto pelo chiado da lâmpada e o tilintar dos dedos do bartender na registradora de metal.

No decorrer dos anos em que Elm afundou enquanto o sol sumia no horizonte, o bartender ficou curioso a respeito dos seus motivos. Apesar do homem ter dado a outros clientes a velha desculpa de “perdi meu emprego... queria espairecer”, no fundo ele sabia que havia algo escondido naquela sombra adoradora de uísque. Mas hoje à noite seria diferente. O bartender mordeu o lábio, respirou fundo e se aproximou de seu leal cliente.

O atendente colocou a mão sobre a mesa e perguntou, no tom mais amigável possível, “Como vai você?”. Robert se pôs de pé com um salto, como se tivesse ouvido um tiro. Ele ergueu a cabeça lentamente e encarou os olhos do bartender com seus grandes olhos acinzentados. Ele possuía um olhar intenso e desconfortante, que perfurava o ar de uma forma nunca vista antes.

Sua boca lentamente se abriu, e ele murmurou “bem... e você?”. O bartender ficou atordoado. Ele esperava a mesma resposta que o velho costumava dar ou algum outro resmungo, mas foi recebido com uma pergunta estranhamente normal.

“Estou... Estou muito bem...” o bartender respondeu. “Então... Senhor... eu queria perguntar…”. As sobrancelhas ligeiramente grisalhas de Elm se ergueram de ansiedade. “Por que você vem aqui o tempo todo?”

O bêbado riu e perguntou de volta “Por que você dá a mínima para o que um velho como eu faz com seu tempo livre?”

“Porque...” disse o bartender, confuso, “você vem ao meu bar no mesmo horário toda noite nos últimos doze anos e só agora eu ouvi sua voz... acho que isso é motivo suficiente pra eu perguntar.” O velho explodiu em gargalhadas que duraram pelo menos um minuto.

Finalmente seu acesso de riso terminou e ele perguntou “Você queria saber... por que eu não falava?”

“Sim!” gritou o bartender, “Tem sido um mistério que eu tenho tentado resolver por anos!”

Robert colocou sua bebida sobre a mesa e disse: “Muito bem novo amigo... honestamente... eu estava esperando que você me fizesse essa pergunta, e agora que tiramos isso do caminho, sente-se comigo.” O bartender obedeceu, sentou-se à mesa com seu novo conhecido e, com um olhar de puro espanto, perguntou “Então deixa eu ver se entendi... você nunca disse uma palavra a ninguém nesse bar porque estava esperando que alguém viesse até você?”

“Sim...” A sombra respondeu, e em seguida o bartender riu e continuou. 

“Muito bem senhor, o que você esperou tanto tempo pra contar para alguém?”

Robert Elm olhou o bartender direto nos olhos e disse “Minha história, é claro.” O bartender deu um olhar zombeteiro enquanto o homem continuava, nunca desviando seu olhar. “A história de como eu acabei aqui, a história de como eu escapei da própria morte por um triz e... bem, como eu não vejo mais ninguém aqui, você, meu caro, será o primeiro em muito tempo a ouvir o meu conto... você terá uma surpresa!” o velho deu um sorriso torto.

“Bem, vamos ouvi-lo então!” o bartender disse, e Robert riu novamente.

“Esse é o espírito garoto! Pegue um drink e fique confortável, vai ser uma bela de uma história!”

E então Robert Elm começou sua história.

Tudo começou em novembro de 1962. Eu morava em uma cidadezinha rural em Iowa. Naquela época todo mundo se conhecia, como uma família. Era um lugar seguro, por isso minha família se instalou lá quando era só um pedaço de terras inférteis. Durante a minha adolescência inteira eu corri atrás de uma garota chamada Elizabeth... eu posso praticamente vê-la agora... conforme o tempo passou nosso relacionamento cresceu. Depois do colegial, nós compramos a casa do tio dela na Rua 4 e lentamente aprendemos a viver juntos, como um casal de noivos. Era uma barra, no mínimo. Quando eu era jovem, tinha um temperamento explosivo que parecia crescer conforme ficávamos mais íntimos um do outro.

Eu me lembro de uma ocasião específica, quando ouvi que ela tinha batido o carro do meu pai... eu... eu a acertei no rosto com uma lata de lixo... eu nunca me arrependi tanto de algo na vida, e nem tinha sido culpa dela. Toda manhã, durante o mês seguinte, eu descia as escadas e via o hematoma pálido no rosto dela e imediatamente ficava sufocado demais para falar. Era um milagre ela ainda me manter por perto. Certa noite tudo desmoronou. Eu nem me lembro do porquê, mas ela me deixou na beira da estrada e disse “se vira pra voltar pra casa, seu saco de bosta!” Eu me lembro do meu coração afundando enquanto ela ia embora, e eu comecei a vagar pelo acostamento da estrada vazia.

Não tenho certeza de como fiquei tão perdido, mas depois de cerca de uma hora andando a esmo cheguei a um campo de milho margeando a única estrada que levava para fora da cidade. Ali estava eu, chorando profusamente, arrancando as espigas de milho com meus punhos e gritando, a plenos pulmões, “Elizabeth! Eu sinto muito!”, com apenas os pássaros e alguns corvos de testemunhas. Eu cambaleei sem direção pelo que pareceu horas, gritando e chorando pelo que eu havia feito à minha noiva, até que decidi me sentar em um pedaço estéril de uma plantação, para recuperar o fôlego e elaborar uma desculpa para quando eu voltasse pra casa.

Depois de inspecionar a área por qualquer sinal de perigo, eu deitei a cabeça na terra macia para descansar os olhos. Muitas horas de um abençoado sono sem lágrimas se passaram antes que eu fosse acordado por um farfalhar nos arbustos próximos. Meu coração se acelerou e um calafrio percorreu minha espinha, então eu me levantei de um pulo. Diante de mim, uma forma massiva, vestida com um robe preto brilhante, havia saído da plantação. Ele se movia na minha direção devagar, como se flutuasse sobre o solo, apesar de seus pés estarem totalmente visíveis. Ele tinha mãos pálidas e enrugadas, que balançavam dos lados conforme ele se aproximava. Ele inclinou sua cabeça encapuzada e falou bem na minha cara, como uma voz seca e monótona:

“Boa noite, viajante.”

Atordoado, eu me levantei e perguntei “Quem é você?”

Ele respondeu “Apenas um homem a caminho de uma reunião”.

Eu olhei pra ele, aturdido. “Por que você está aqui?” eu perguntei.

Ele olhou pra cima e disse “Eu gosto de curtir a paisagem, muito mais pacífica do que o alvoroço das estradas. Agora eu é que pergunto quem é você e por que está aqui.” Quando eu olho pra trás agora, fico surpreso ao ver o quão ansioso eu estava para revelar tanto sobre mim para um completo estranho.

“Meu nome é Robert”, eu disse, timidamente. “Minha namorada me largou aqui porque nós brigamos e eu bati nela e ela chorou e... e...” As lágrimas brotavam em meus olhos novamente.

“Não diga mais nada amigo”, o homem interrompeu, fazendo um aceno com a mão. “Eu te farei uma proposta, você poderá vir comigo à minha reunião, e meus amigos e eu iremos te animar, e te levaremos para casa de manhã. O que você acha?”

Um sorriso lentamente se formou no meu rosto enquanto eu agradecia a figura encapuzada. Eu estendi a mão para cumprimenta-lo, mas ele rapidamente recuou, dizendo que não havia necessidade de agradecer.

Juntos nós atravessamos o resto do campo e entramos na floresta, que formava uma fronteira isolada entre cada lote de terra. Conforme andávamos, tive mais tempo para analisar a figura do meu novo amigo. Era praticamente um titã, pra dizer o mínimo. Tinha mãos que poderiam cobrir meu rosto duas vezes. Se misturando com as próprias árvores, ele tinha pelo menos uns dois metros e dez de altura.

Ele se movia com uma agilidade surpreendente para alguém do seu tamanho, disparando entre os arbustos e sobre raízes com uma velocidade um pouco abaixo de uma corrida. Eu tinha que andar com quase o dobro da velocidade para acompanha-lo. Suas roupas ainda brilhavam, assim como no campo de milho, apesar de a lua não estar mais visível. Estranhamente, não importa o quão rápido ele se movesse, o capuz jamais revelava sua face. Cansado do silêncio, eu tentei puxei assunto.

“Então... qual o seu nome?” eu perguntei.

O homem olhou para baixo e me disse “Você pode me chamar de Lombart. É uma das minhas muitas alcunhas.”

“Okay Lombart, quem são esses seus amigos e o que é essa reunião e... e pra onde estamos indo?”

“Apenas uma reunião, amigo, realizada aqui na floresta com alguns amigos próximos. Não precisa se preocupar, Robert. Pense nisso mais como uma festa. Irá livrar a sua mente de preocupações.

Foi nesse momento que eu percebi que estava fazendo exatamente o oposto do que a sociedade havia me ensinado. Eu fui encontrado deitado em um campo e decidi caminhar com um estranho e ir encontrar seus amigos na floresta. Um coração partido pode levar as pessoas a fazer coisas bem doidas.

Não demorou muito até eu ver uma luz à distância. Conforme nos aproximávamos, vi que as luzes eram na verdade um anel de tochas, disposto de forma circular, e dentro desse círculo havia várias fileiras de mesas e cadeiras. Um altar, coberto com um pano vermelho, jazia no centro de tudo. Em cada uma das mesas havia um grupo de pessoas sentadas, vestidas de forma similar à Lombart. Alguns deles tinham o removido o capuz e possuíam a face exposta.

“Nós chegamos!” disse Lombart com alegria. “Sente-se entre os outros e sirva-se de comida e bebida, os festejos irão começar logo!”

Eu me aproximei de um dos grupos mais quietos e ocupei um lugar vazio. Se bem me lembro, era o único lugar que ainda estava vago. Perto de mim havia um casal e um jovem com capuz. Quando perguntei a cada um deles por que estavam ali eu tive... uma resposta bem longe do ideal. O casal começou a rir como se tivesse ouvido a melhor piada de suas vidas, e o cara com capuz só resmungou algo que eu não pude entender. Vendo que as pessoas ao meu redor não tinham nada de interessante, decidi experimentar a comida. Havia alguns pedaços de pão cercados por carnes de todos os tipos e tamanhos.

Eu havia feito uma refeição na cidade algumas horas antes disso tudo começar, então não estava com muita fome. Resolvi experimentar o vinho, que estava em cálices à frente de cada cadeira. Eu tomei um pequeno gole e minha mente tomou um chute no saco. Minha visão ficou cheia de borrões coloridos e comecei a engasgar com minha própria língua. A velha me disse que parava de doer depois do terceiro cálice e em seguida ela começou a gargalhar. Depois de cerca de cinco minutos, os efeitos da bebida finalmente passaram e eu derramei o resto no chão, silenciosamente... achei que nenhum deles iria notar. De repente, uma campainha soou e os comensais se levantaram das cadeiras ao mesmo tempo e se aproximaram do centro da clareira. Lombart abria caminho conforme me levava até o centro.

“Você gostou da bebida? Dos convidados?” ele perguntou.

Eu fiquei calado sobre minha experiência desagradável à mesa e disse “Estava tudo ótimo! Eu me acalmei um pouco! E agora?”

“Excelente, meu amigo! Estou certo de que você irá consertar as coisas com sua garota hoje à noite e estou feliz por ajudar, mas agora temos negócios a tratar.”

Nós estávamos parados no centro de um círculo formado pelos convidados encapuzados, todos com o rosto coberto e com as mãos cruzadas na frente deles. Lombart me disse para me sentar no centro do círculo. Quando eu me opus, ele disse que aquilo era apenas uma formalidade, para que o grupo aceitasse minha presença entre eles nesta noite. Eu me ajoelhei quando mandaram e Lombart tomou seu luar no altar rubro.

Quando olhei ao meu redor, todas as pessoas de robe pareciam emanar um cântico estranhamente monótono, que aumentava a diminuía conforme o tempo passava. Eu olhei pra cima, para o meu guia gigante, que tinha se virado para encarar o centro do círculo. Para minha surpresa, ele tirou o capuz, revelando uma visão que eu jamais vou esquecer. Sobre os ombros largos de Lombart havia uma cabeça de bode, totalmente preta, exceto por uma linha branca entre seus olhos verdes e pálidos e chifres espiralados cor de marfim, que se curvavam atrás de suas orelhas. A... coisa que estava na minha frente ergueu suas mãos no ar e o cântico parou imediatamente.

A cabeça de Lombart pendeu para trás e ele gritou para a noite “Senhoras e senhores do Círculo Negro! Eu lhes apresento: O Pálido!”

A multidão vibrou e aplaudiu euforicamente.

“Nesta noite nós acabaremos com o tormento! E traremos uma nova era de paz para a nossa Ordem!”

O jovem que estava sentado perto de mim se aproximou do orador.

“Meu Lorde”, ele sussurrou enquanto se prostrava em um joelho, “Eu o testemunhei mais cedo, ele não aceitou o purificador. Nós não podemos continuar até que ele o tenha feito.” Ele então voltou ao seu lugar e retomou a postura.

“É mesmo...” disse Lombart, pensativo. “Muito bem então! Sinto pelo atraso, minhas crianças, mas o sacramento deve esperar!”

O círculo respondeu a essa frase com vaias e uivos de desaprovação. Um membro grande da multidão sacou uma lâmina curva do seu robe e se aproximou de mim. Eu tentei levantar, mas fui empurrado para baixo por alguma força invisível.

“Pelo amor de Sekra! Eu esperei minha vida inteira por esse momento!” o homem gritou enquanto girava a faca na mão.

“Pare, seu tolo! Você vai estragar tudo!” Lombart rugiu enquanto agarrava os braços do homem.

A última coisa de que me lembro é da forma colossal de Lombart agarrando o homem de capuz, até que ambos caíram no chão diante de mim. No meio da confusão, o punho da faca do homem me acertou bem no meio dos olhos e eu perdi a consciência.




sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Dezessete


Edgar ergueu a cabeça. Tinha as costas pressionadas firmemente contra o encosto de sua poltrona favorita, e seu corpo estava encharcado de sour. Ele encarou as trevas no canto da sala de estar, com os olhos lacrimejando, enquanto apontava, lenta e deliberadamente, um revólver para sua têmpora. "Dezessete", ele sussurrou para a escuridão.

O dedo indicador de sua mão direita já havia encontrado seu lugar no gatilho enquanto a arma era erguida. Ele não havia hesitado mais do que um segundo e sua única preocupação era se certificar em encontrar um ângulo realmente fatal. Ele cerrou o punho esquerdo, reforçando sua determinação. Ele inspirou bruscamente. E sem mais necessidade de ar ou vontade, ele cerrou o punho direito.

As trevas mudaram para uma luz brilhante a partir do barril da .38 Special, conforme o estampido do tiro ecoou pela sala. Os restos de Edgar Freeman caíram de lado no que um dia fora sua poltrona favorita. O outro homem com ele naquele cômodo sorriu suavemente. Aquele que estava nas sombras, sendo brevemente iluminado pelo clarão, aquele homem pálido de terno, com olhos azuis desbotados. Ele sorriu conforme tudo ficou cinza. Edgar se sentou na cama, arrancando as cobertas, como sempre fazia toda manhã depois de acordar daquele maldito pesadelo. Após a quarta noite seguida tendo o mesmo sonho, ele começou a dormir com o abajur ao lado de sua cama aceso. Depois da sexta noite em seqüência, sua ânsia em acordar acabou por derrubar esse abajur no chão – lâmpada espatifada e luminária rachada pelo impacto. Esta tinha sido a oitava noite, e enquanto xingava de todos os jeitos que podia se lembrar na escuridão de seu quarto, ele jurou que hoje iria encontrar tempo para comprar uma caixa de lâmpadas.

Evocando sem querer o sorriso inapropriadamente doce do estranho no sonho, ele se lembrou de pedir ao funcionário pelas lâmpadas de maior voltagem. Depois de um banho quente e alguns minutos organizando os pensamentos na beirada da cama, Edgar se preparou para aquele dia. Ovos mexidos quase sem gosto e um café que seria muito melhor se não tivesse gosto de nada compuseram seu café da manhã, e seus pensamentos divagaram sobre como o café da manhã preparado por Haley seria absurdamente melhor. Independente dos outros problemas que eles tinham, as habilidades culinárias de Haley eram irrepreensíveis. Ele regularmente acordava com o cheiro delicioso de um café da manhã nutritivo que ela preparava para ele – normalmente ovos fritos com bolinho inglês e um grande copo de suco de laranja – pelo menos até que os enjôos matinais começaram, mantendo-a ocupada em suas preces para a deusa de porcelana pela primeira hora de todos os dias. Tudo isso, ele se lembrou amargamente, estava no passado agora.

Sendo o Vice-Presidente de Marketing da segunda maior empresa de moda esportiva do país (e, conforme sua opinião sobre si mesmo, um homem atraente), Edgar estava mais do que acostumado a flertes ocasionais – tanto sutis quanto agressivos – de estagiárias e colegas de setor. Isso veio com o cargo, mas nunca foi algo com o qual ele não conseguisse lidar. Pensamentos sobre levar um flerte adiante ou denunciá-los para o RH raramente cruzavam sua mente. A primeira opção era descartada pelo pensamento de sua esposa grávida, e a segunda devido à massagem no ego que o flerte proporcionava. No entanto, um mês atrás, Edgar começou a ter um caso com uma estagiária particularmente gordinha, chamada Samantha. Ela não tinha nada de especial. Só um corpo quente para saciar a vontade que Haley não queria ou não podia atender depois de entrar no terceiro trimestre. Até o sexo era trivial.

O primeiro encontro teve lugar em um motel a alguns quarteirões do escritório. O tipo de lugar com janelas com vista para rodovias e acessos nada bonitos, onde até as baratas usam luz negra antes de rastejar por baixo da cama. Como uma tentativa para dar legitimidade ao lugar, o estabelecimento havia parado de anunciar o preço por hora – um fato conhecido, pois Edgar perguntou a respeito quando entrou.

Após o primeiro encontro, os dois ficaram mais ousados e menos cautelosos em suas indiscrições. O escritório de Edgar foi o próximo, e dessa vez havia sido um pouco mais satisfatório – uma combinação de perigo e a saia que Samantha deixou vestida, a pedido dele. Mas ousadia rapidamente se transformou em descuido, e Edgar era um aprendiz de infiel menos de duas semanas antes de Haley descobrir sua traição.


Talvez tenha sido um cheiro ou perfume estranho, ou uma ligação de alguma rejeitada invejosa que tenha visto os dois juntos no escritório. O fato é que não demorou muito até que Edgar tivesse que encarar a questão de seu adultério com Samantha assim que chegou em casa. Ele foi acusado no momento em que atravessou a porta. Edgar havia chegado tarde de um rompante particularmente selvagem com Samantha, e as palavras saindo dos lábios trêmulos de Haley rapidamente revelaram o quanto ela sabia.

Seria inútil mentir – ela sabia de muitos detalhes e ele tinha muito pouca imaginação – então Edgar confessou, e fez um esforço superficial para justificar seu comportamento. Ela o xingou com uma intensidade que Edgar nunca viu antes, e suas palavras finais deixaram claro que ela estava indo embora e que iria garantir que ele jamais teria qualquer participação na criação de seu filho. Apesar da angústia de perder Haley, Edgar havia passado muito tempo em um ramo de negócios impiedoso para simplesmente encarar ameaças de forma passiva, até mesmo de sua esposa. Ele riu amargamente, e a lembrou da qualidade dos advogados que seu dinheiro poderia pagar. Quando ele terminou, havia dito palavras das quais tinha se arrependido instantaneamente, mas se viu em um silêncio impotente. Disse que ela teria sorte se conseguisse passar os fins de semana e alguns feriados com a criança.

Isso era mentira e ele sabia, mas naquele ponto a idéia era sair da defensiva e recuperar a vantagem na discussão – talvez até mesmo fazer com que Haley reconsiderasse sua decisão de ir embora. Ele assinaria alegremente alguns cheques robustos para um conselheiro matrimonial se isso o livrasse de assinar alguns ainda maiores na forma de pensão alimentícia. Mas algo na forma como Haley sorria pra ele indicava que ele não havia entendido suas intenções. E quando ele percebeu, era tarde demais. Se ele tivesse sido mais atento, teria notado o gancho vazio no porta chaves e o teria conectado àquele sorriso sarcástico no rosto dela.

Ela não saiu logo em seguida, como ele esperava. Não era assim que funcionava nos filmes e na televisão? O cara voltava do banheiro ou do bar, um tempo depois da briga, pra encontrar a mala da garota arreganhada e entupida com todas as roupas caras que ele comprou pra ela durante o relacionamento? Com ela orgulhosa e ele prostrado e implorando?

Edgar jamais agiria dessa forma em sua vida, mas esperava isso de Haley. Ao invés disso, uma hora depois de ele ter abandonado a discussão para tomar um banho bastante necessário, ele olhou para a sala de estar, apenas para encontrá-la sentada em sua poltrona favorita (que vadia), olhando para o vazio e acariciando sua barriga grávida (Minha nossa, ela está pronta pra parir).

No que dizia respeito a Edgar, aquele era o fim da primeira de supostamente muitas discussões a respeito desse assunto. Ele desceu as escadas em silêncio e deitou na cama. O dia havia sido longo o suficiente e ela claramente não iria a lugar nenhum, senão já teria saído. Haley nunca foi para a cama, mas ele também não ouviu a porta da frente bater atrás dela antes dela partir – então pareceu que ela decidira ficar pelo menos por essa noite. "Tudo ficará bem", Edgar disse a si mesmo, conforme ficava sonolento. "Mas duvido que ela prepare meu café da manhã por alguns dias".

O ruído que o arrancou de seu sono profundo veio logo depois das cinco da manhã, de acordo com seu despertador. Quando ele finalmente despertou, o som tinha sumido tão rápido quanto tinha surgido. Ele parou, refletindo, e vasculhou a cama, com olhos tão sonolentos que mal conseguiam realizar essa simples tarefa. Percebendo que o lugar de Haley estava vazio, Edgar abriu a porta do quarto e desceu as escadas para descobrir o que tinha causado o barulho.

Ele nem precisou chegar ao fim das escadas, nem deixar seus olhos se ajustarem, para perceber que ela havia decidido mesmo deixá-lo. Uma olhada na sala de estar tirou qualquer dúvida a esse respeito. Não havia malas abarrotadas nem olhares orgulhosos – só uma estante de armas aberta, uma mancha rubra na parede e um gotejamento constante da mesma cor, pingando pelo lado de sua poltrona favorita e fazendo uma poça no chão de madeira polida.

Após um momento de choque paralisante, Edgar se arremessou rumo ao telefone, com passos largos e desesperados. A rapidez não era pelo bem de Haley, pois através de seu crânio recém aberto dava pra ver claramente alguns trechos do debate presidencial que estava sendo televisionado, do outro lado da sala. A pressa era por seu passageiro inocente de sete meses e meio. Ele deu todas as informações pertinentes para o operador de atendimento absurdamente indiferente da emergência, e esperou no corredor, com a porta da frente escancarada.

O tiro tinha atraído uma multidão de vizinhos madrugadores para a entrada da garagem da residência dos Freeman, um fenômeno gerado não pela bravura perante o perigo, mas sim pela ignorância comum diante dele. Ignorância essa reservada exclusivamente aos bairros habitados pelos ricos e bem abrigados. Eles o encaravam acusatoriamente, com, no mínimo, um princípio de desconfiança no olhar. Edgar ficou furioso com eles por isso. Primeiro com pensamentos enraivecidos, depois com rosnados guturais e uma impotente agitação. Eles davam um passo coletivo para trás quando sua fúria e frustração cresciam, e avançavam novamente quando os gritos diminuíam em ferocidade – uma onda humana de observadores boquiabertos.

O espetáculo foi temporariamente dispersado pela sirene e subseqüente surgimento da ambulância, cujos paramédicos surgiram apenas alguns minutos depois da ligação de Edgar (outra característica exclusiva do tipo de vizinhança onde Edgar e Haley Freeman moravam). A multidão abriu espaço para os veículos de emergência, mas logo achou outro ponto de observação na grama de Edgar. Os paramédicos encontraram a esposa de Edgar caída sobre sua poltrona e amarraram seu corpo sem vida em uma maca. Assim que ela estava segura, eles a tiraram rapidamente da casa e a colocaram na ambulância. Edgar pulou pra dentro também, e não houve tempo de fazer nem responder perguntas antes que os funcionários batessem a porta e disparassem rumo ao hospital.

Entre checagens de sinais vitais e tentativas de bombear oxigênio no cadáver de sua esposa pelo bem do nascituro, Edgar notou olhares cautelosos sendo jogados em sua direção pelos paramédicos – bem como as luzes azuis de vários veículos da polícia seguindo a ambulância de perto. "Eu não tive nada a ver com isso", ele queria dizer – queria gritar – mas no fundo de sua mente ele sabia que isso estava a apenas um ou dois passos de ser totalmente verdade, então ele permaneceu em silêncio.

Ele achou que seria algemado assim que chegasse ao hospital, mas ao invés disso o grupo de oficiais da polícia simplesmente disse que eles iriam esperar com Edgar enquanto os médicos faziam o que podiam para salvar o bebê – e talvez conseguir alguma informação com ele, se ele resolvesse falar. Edgar fez um aceno, concordando, principalmente porque os agentes davam sinais de ter a intenção de arrancar informações dele independente de ele estar a fim de falar ou não.

Eles ficaram do lado de fora da sala de operação, enfileirados na área de observação. Os policiais deram espaço para Edgar. Seu rosto estava a alguns centímetros do vidro, fazendo pausas ocasionais para limpar o vidro com sua manga, após respirações frenéticas o deixarem opaco. Eles o questionaram hesitantemente. Ele os respondeu rispidamente e sem se importar com as palavras que usava. Suas preocupações estavam em outro lugar e ele sabia que não havia nada que ele pudesse deixar escapar que fosse incriminá-lo. Ele assistiu enquanto o cirurgião fez uma grande incisão no baixo-ventre de Haley (pelo menos ela está anestesiada pra isso, Edgar pensou, insanamente) e se preparou para remover a criança de seu útero.

Após alguns minutos, todos na área de observação sabiam tudo que precisavam saber. Os policiais sabiam que Haley aparentemente havia morrido pelas próprias mãos (a autópsia iria confirmar ou negar isso), e que havia feito isso por causa da infidelidade de seu marido, e que Edgar não havia reparado em nenhum sinal que antecedeu o suicídio. Edgar, por sua vez, sabia que o bebê estava vivo, mas morrendo, sabia que o bebê era um menino (eles queriam que o sexo da criança fosse surpresa, uma das coisas com as quais ele e Haley nunca discordaram), e sabia que o bebê estava sendo colocado em uma incubadora, como um esforço de última hora para salvar sua vida.

Edgar ficou do lado de fora da sala, com a polícia agora mantendo uma distância ainda mais respeitosa conforme ele assistia ao seu filho morrer. Havia pouca comoção em relação a isso, e pouco que os médicos pudessem fazer para evitar. Os olhos da criança se abriram uma única vez durante todo o tempo, e a próxima coisa que Edgar sabia era que estavam anunciando a hora da morte como sendo 5h46. Eles o separaram de Haley às 5h29, Edgar pensou freneticamente. Minha criança - meu filho – estava vivo a menos de uma hora atrás. Eu nem tive tempo de dar um nome a ele. Essa era a promessa que fizemos, já que não conseguíamos concordar nem na porcaria do nome. Edgar socou a parede, e sentiu uma vaga sensação de seu punho se quebrando. Conforme ele caía sobre seus joelhos, sua mão doía bem menos do que as lágrimas escaldantes que jorravam de seus olhos

Isso foi há duas semanas. Hoje, Edgar comeu ovos quase sem gosto e bebeu café que seria melhor se nem tivesse sabor. Oito noites ele viveu com o pesadelo de se matar destruindo qualquer resquício de sono. Oito noites agora ele viveu com o homem nas sombras de um pesadelo, sorrindo com sua decisão de tirar a própria vida. Lâmpadas, uma caixa bem grande delas, a maior voltagem disponível na loja, hoje depois do trabalho. Edgar lembrou-se novamente dessa incumbência enquanto vestia a jaqueta e saía pela porta.

O trabalho correu como sempre, exceto pela distração adicional e pela capa mórbida do filtro de água, providenciado pelo suicídio de sua esposa. Era incômodo, mais do que tudo.

Edgar primeiro se tornou consciente de uma forma humana, parada do lado de fora da porta do seu escritório, quando olhou para o relógio para determinar quão longe na noite ele havia se perdido em papeladas. Ele chegou no trabalho na alvorada, e certamente já era crepúsculo, no mínimo. O dia havia sido típico da volta de um colega de luto – banalidades insignificantes e simpatia falsa, palavras vazias de corações vazios, de pessoas pagas para fingirem que se importam, mas não pagas o suficiente para fingir de forma convincente. Não dá pra dizer exatamente quanto tempo o homem silencioso ficou parado nas trevas do corredor, mas Edgar recordou da primeira sensação vaga de estar sendo vigiado, alguns minutos atrás. Todos, exceto os guardas do turno da noite, já tinham ido embora horas atrás, dando a ele uma trégua de boas-vindas na qual ele poderia se concentrar e recuperar o trabalho perdido. Ou foi isso que ele pensou, até essa nova interrupção.

“Olá?” Edgar hesitantemente cumprimentou o intruso, já esperando pelo próximo em uma longa fila de pessoas péssimas para dar consolos emocionais. “Boa noite, senhor”, a resposta veio, dissonante e áspera. Seus olhos ainda tentavam se adaptar à mudança drástica da iluminação de seu escritório para o corredor, iluminado apenas pelo luar vazando por algumas janelas bem espalhadas. Edgar achou que, pela voz desconhecida, poderia ser um estranho – um vendedor, talvez – ou um colega com alguma gripe bem séria, que não deveria estar espalhando-a por aí.

“Entre aqui, eu estou com os olhos manchados de tanto olhar pra essa lâmpada pelas últimas duas horas, não consigo enxergar nada aqui fora.”

“Realmente não posso ficar”, o homem entonou, praticamente gorgolejando, “só estou de passagem”.

“É, sei o que quer dizer. Já passou da hora de se demi... nós nos conhecemos?” Os olhos negros de Edgar começaram a se adaptar, e ele ficou desconfortável. O estranho ainda estava difuso e borrado, mas claramente usava um terno preto de algum tecido irreconhecível. Mais um minuto e ficaria claro se ele era algum tipo de auditor interno durão do 14º andar, ou outro detetive fuçando por aí depois da morte de Haley. Quem quer que fosse, o terno o fazia parecer um estranho. As sextas feiras no trabalho eram sempre um Dia Casual, quando até os Executivos Senior usavam camisas polo e caqui. O homem não mostrava sinais de que iria embora, então Edgar forçou seus olhos para determinar se ele possuía um daqueles crachás de acesso ridículos que eles tinham que usar pelo prédio.

“Sou novo. Sou um mensageiro. Estou aqui para entregar uma encomenda.”

Edgar ergueu a cabeça, duvidoso. Um entregador usando um terno completo? Tenta outra. E sem crachá. Edgar não respondeu, esperando que o estranho (escriturário? Testemunha de Jeová?) voltaria para seus assuntos e iria embora.

“Você trabalha por tantas horas. Você não sente falta de sua família, senhor?”

Um nó se formou na garganta de Edgar, e ele se endireitou na cadeira. Passado o choque inicial, Edgar relaxou um pouco a postura, rapidamente e se convencendo da natureza inofensiva da pergunta. Um representante do sindicato dos trabalhadores – claro. Ele entrou aqui para tentar fingir uma simpatia delicadamente formal, tagarelar sobre horas extras não remuneradas e crianças indo dormir sem a companhia dos pais. Só para tentar nos induzir a abolir a cláusula contra sindicalização dos trabalhadores das fábricas. “Eu recebo uma bela recompensa pelo trabalho que eu faço, assim como todos os meus colegas. Então, não, estou bem, de verdade. Obrigado.” Isso deve pôr um fim nisso, ele pensou, com certa satisfação maliciosa.  

“Oh. Sinto muito em ouvir isso. Bem...” O estranho virou-se suavemente, como se fosse embora, fez uma pausa, e inclinou sua cabeça para dentro do escritório pela primeira vez.

“Eles certamente sentem sua falta.”

As palavras atingiram Edgar como gelo afiado na espinha, apertando seu crânio com tentáculos tão gélidos quanto uma tumba. O rosto sumiu tão rápido quanto havia aparecido – assim como a silhueta do homem – mas a visão horrenda permaneceu cauterizada na mente de Edgar, e nas profundezas de seu ser, ele sabia que a imagem permaneceria ali até o dia de sua morte. Os olhos eram de um azul leitoso, tão distante e pálido que pareciam cegos, mas encararam Edgar com um olhar tão penetrante que o convenceram de que aqueles olhos enxergavam muito bem. Já o resto da face não exibia tais sinais de vitalidade. Sua pele era pálida e macilenta e, mesmo à distância, apresentava uma textura semelhante à de couro usado. As bochechas e órbitas dos olhos estavam fundos no rosto, com a pele pendendo desses lugares, ainda que firme na testa e ao redor a boca. Magro e cadavérico, cada detalhe, desde o cabelo seboso e emaranhado, até os músculos trêmulos quando ele falava, era idêntico às características do estranho sombrio dos pesadelos recentes de Edgar. Mas todo o resto era irrelevante se comparado ao terror absoluto que ele sentiu ao ver aqueles malditos olhos. Havia algo estranhamente familiar neles, algo terrível que ele não conseguia nomear ou explicar.

Assim que recobrou o controle de seus membros paralisados, Edgar disparou na direção da porta onde o homem estava momentos atrás. O elevador ainda não havia chegado, e ele ainda não tinha escutado o ruído típico da porta das escadarias, audível cada vez que ela era aberta ou fechada. “Ele ainda está neste andar”, Edgar pensou, freneticamente. A ideia deu a ele forças, mas não muita clareza ou propósito. Ele sabia apenas que precisava confirmar se a presença do estranho era mais do que um mero resultado de sua mente sobrecarregada e consciência pesada. Não sobrou nenhuma mesa de escritório, cabine de banheiro ou armário que não tivesse sido revistado por Edgar quando sua busca atingiu o ponto mais tenso. Pôsteres motivacionais colados nas paredes, com empresários gentis demais e totalmente suspeitos, sorrindo e apertando as mãos, pareciam zombar dele. Conspirando silenciosamente contra Edgar em sua busca. “Claro que sabemos quem ele é e para onde ele foi”, Edgar podia imaginá-los dizendo, “mas estamos ocupados demais alavancando nossa energia e nos empenhando em processos de mais-valia para dialogar sobre sua iniciativa”. Ele passou ambas as mãos pelos cabelos, agarrando alguns tufos e os puxando levemente. Seu visitante, se é que era algo mais do que uma ilusão, havia partido sem ser visto nem ouvido. Edgar podia sentir seu coração batendo violentamente, parecendo se chocar contra sua caixa torácica. Ele parou apenas para pegar sua maleta antes de correr escada abaixo para escapar do vazio extremamente opressivo do escritório.

O estacionamento executivo não tinha janelas, e por isso era ainda mais escuro de que o prédio dos escritórios. Estava deserto, exceto por ele e seu Lexus, e estava assim desde que o segurança terminou sua última ronda noturna, horas atrás – o guarda havia desligado todas as luzes, exceto a que sinalizava a saída. Apesar dessa pequena segurança, Edgar se viu lançando olhares furtivos sobre os ombros, e acelerando o passo sempre que não havia razão nenhuma para fazê-lo. Ele nunca foi um homem supersticioso, e o medo de monstros já estava enterrado há muito tempo atrás pelos horrores ambulantes que caminham entre os homens em plena luz do dia. Empréstimo educacional, seguros, demissões, pagamentos de hipoteca – vida. Edgar aprendeu, décadas atrás, sobre presas e garras que fazem vampiros e lobisomens parecerem brincadeira de criança. E ainda assim, repreendeu a si mesmo enquanto procurava, desajeitado, por suas chaves. Só é necessária uma cutucada na imaginação para despertar aquele terror primordial – para povoar a escuridão vazia com coisas que não deveriam existir.

Ele estava a um metro e meio de seu carro e havia acabado de destravá-lo com o controle remoto quando ouviu o grito. Era estridente, feminino, aterrorizado, e tinha vindo dos escritórios logo atrás dele. “Será que a Haley gritou assim logo antes de puxar o gatilho?” Edgar pensou. Ele parou onde estava, deu meia-volta rapidamente e não viu nada. Então, como em resposta à sua pergunta silenciosa, veio o tiro. Edgar apanhou rapidamente o celular de seu bolso, discando 192 freneticamente pela segunda vez em algumas semanas. Ele aproximou o telefone do ouvido, mas o atendente parecia extremamente distante. Entretanto, o estalido de passos, vindo dos escritórios na direção do executivo, pareciam bem próximos. Edgar largou o celular e praticamente mergulhou em seu carro. Seu pé estava no acelerador tão rápido quanto ele conseguiu engatar a marcha. As estradas do lado de fora do escritório estavam iluminadas unicamente por luzes das ruas e o flash ocasional de um carro no sentido oposto. O sol já havia desaparecido no horizonte horas atrás – quando as pessoas de cáqui ou saias compridas pararam de fingir que se importam com os problemas uns dos outros e deixaram Edgar sozinho com duas semanas de papelada atrasada. O estresse, Edgar tentou convencer a si mesmo, pode te fazer ver coisas. O estresse, ele racionalizou, pode te fazer ouvir coisas. Trauma emocional. Mas nada disso fez com que a pressão em sua mente diminuísse, nem a pressão no pedal, enquanto ele acelerava rumo à sua casa.

Durante sua chegada afobada, Edgar sabia que algo estava errado antes mesmo de entrar pela porta da frente. Ele não desligava nenhuma luz desde que os pesadelos começaram, muito menos quando ele esperava chegar em casa muito depois do pôr do sol. E mesmo assim, ele se viu tropeçando no corredor, tentando acender as luzes. Quando suas mãos cegas finalmente encontraram o interruptor, não foi muito surpreendente perceber que ele estava quebrado – de acordo com os acontecimentos do dia, seria uma surpresa maior se ele estivesse funcionando bem. O instinto dizia para que ele desse meia volta e fugisse da casa, mas o número 1 piscando em vermelho na sua secretária eletrônica o atraia com uma urgência ainda maior.

A despeito das suas mãos estarem tremendo de ansiedade, Edgar apertou o botão Play com uma precisão absurda, um movimento que ele desenvolveu muito bem durante as duas últimas semanas. Pessoas com quem ele não falava e nem pensava a respeito desde antes de conhecer Haley aparentemente não tinham se esquecido dele, e passaram todo esse intervalo de tempo, desde a morte dela até agora, ligando para oferecer seus sentimentos. A preocupação deles servia apenas para piorar a sensação de culpa a cada mensagem – o que ele fez para merecer amigos tão leais? Ele já previa outra dose do mesmo consolo, quando uma das últimas vozes que ele esperava ouvir emanou da secretária eletrônica.

“Edgar?” a voz, geralmente tagarelante, estava tingida com um inconfundível tom de preocupação.” É a Samantha. Eu sei que não deveria estar te ligando. Provavelmente sou a última pessoa do mundo de quem você quer ouvir falar, e eu nem consigo descrever o quanto eu sinto muito pelo que aconteceu”. Houve uma pausa e o que pareceu um choramingo. Edgar pensou que essa era possivelmente a emoção mais verdadeira que ele tinha ouvido de Samantha desde que eles se conheceram. “Desculpe por tudo, de verdade. Eu... nós… nós não podíamos saber como isso ia terminar. Mas eu sei que não tenho o direito de ligar. Só estou preocupada com você, só isso. Eu faltei no trabalho hoje porque soube que você estava voltando e pensei que você não merecia me ver, além de ter que lidar com tudo mais... Eu só consigo imaginar o quão difícil deve estar sendo pra você agora... e pra falar a verdade, eu estava com medo de te ver. Com medo de você apontar pra mim cada vez que alguém te perguntasse alguma coisa, ou algo assim... Eu sei, é estúpido. E egoísta. Mas eu passei no escritório agora há pouco pra pegar alguns trabalhos e levar pra casa, e vi seu carro estacionado na garagem.

Edgar viu a hora da mensagem na máquina. Ela havia ligado em algum momento entre o fim de sua busca desenfreada pelo escritório e antes de ele ter chegado no seu carro. O que significa que ela estava lá bem na hora em que...

A voz na secretária continuou falando, e Edgar estava agora escutando com mais atenção do que nunca, com os punhos ficando brancos de tanto apertar o balcão da cozinha.

“... vi que a luz do seu escritório estava acesa, mas você não estava por perto. E cara... parece que um tornado atingiu esse lugar. Alguém realmente deu a louca aqui. Eu logo pensei em você, então é por isso que estou ligando. Não sei se é tarde demais, ou se eu deveria ter sumido por um tempo e procurado outro emprego e não ter te ligado mais, ou sei lá... quer dizer, o que é apropriado fazer agora? Eu nunca vou poder consertar as coisas, mas... eu realmente sinto muito Edgar. Por favor me ligue de volta assim que ouvir essa mensagem. Eu sinto falta...”

“Falta” foi a última palavra pronunciada por Samantha – a menos que um grito de congelar o sangue conte, seguido por um barulho que silenciou tudo o que poderia ter vindo depois. O tiro ressoou como um trovão, e não perdeu nada em potência do celular de Samantha para a secretária eletrônica de Edgar. O silêncio que se seguiu era ensurdecedor, e Edgar parou na frente da secretária, curvado e encarando-a intensamente – como se ele esperasse que a máquina desse pistas visuais sobre o ocorrido. Ao invés disso, ele obteve um áudio.

“Sentem sua falta, sim. Você faz bastante falta, realmente.” A voz masculina, inegavelmente a mesma de antes naquele dia, gargarejou enquanto ria. A máquina apitou, e um sólido zero o informou que não havia mais nenhuma mensagen não ouvidas. Mas para Edgar aquele zero representava muito mais do que isso. Era quase uma resposta para não apenas quantas mensagens ele tinha, mas para cada pergunta relevante. O que, por que, quem, como? O que resta, o que importa, o que o amanhã trará? Nada além de zero, claro. Apenas uma negação vermelho-sangue.

Edgar soltou suas mãos do balcão e tateou seu caminho pelas trevas da sala de estar. Ele passou por outro interruptor no caminho, percebendo, sem interesse, que este estava quebrado também. Então ele se recostou em sua poltrona favorita. “Eu tive”, Edgar sussurrou no vazio da casa que jamais seria um lar novamente, “um mês bastante difícil”. A resposta para essa frase aparentemente solta veio na forma de uma risada a partir de um canto escuro da sala. Edgar sentiu cada músculo do seu corpo se retesar, e ele perdeu totalmente o controle de sua bexiga. E não podia se importar menos com isso. Ele apenas encarou as trevas e esperou pelo que quer que fosse aparecer, enquanto o calor se espalhava pela frente das suas calças.

O homem nas sombras deu um passo à frente e Edgar estremeceu, afundando na cadeira tanto quanto conseguia. O estranho, colocando de forma simples, ao invés de parecer que seus músculos estavam prontos para abandonar essa prisão terrestre, aparentavam ter completado essa missão. Edgar estava olhando para a face e o corpo de um homem que havia perdido pedaços consideráveis de si mesmo. Como manteiga derretendo em uma sala quente, alguns pedaços até caíram enquanto ele saía da escuridão.

“Eu sei que você deve estar pensando no porquê de eu estar aqui, e porque nas últimas semanas sua vida saiu totalmente do seu controle. Nesse ponto, é uma questão de Destino. Destino é como brincar de cabo-de-guerra com um oponente muito mais forte do que você: às vezes dá até pra sentir a corda vindo pro seu lado por alguns instantes, com seus pés firmes no chão e seus esforços mais sinceros produzindo o resultado pelo qual você tanto esperou, a vitória que você tanto merece. Mas mesmo quando você sente o chão firme sob seus pés, sente que está no controle, isso é apenas o seu oponente ajustando o aperto das mãos. Mas isso não impede o que você pode chamar de livre arbítrio. As escolhas que as pessoas fazem é o que coloca o Destino em movimento, e esses são momentos pivô.” Ele fez uma pausa, e em seguida fez um adendo, “como você, alugando aquele quarto de motel. Muito pouca coisa - e nenhuma consequência - esteve sob seu controle desde aquele momento. Sua vadia está morta agora, e pela sua própria arma. O olho direito dela se parece com o número na sua secretária eletrônic. Nada além de um grande zero vermelho. Nenhuma mensagem. Até o nascer do sol você estará em uma cela. Sua esposa descobriu sobre você e a vadia há algumas semanas. Talvez ela tenha tirado a própria vida, talvez você tenha desempenhado um papel nisso. A vadia, no entanto... foi assassinada. Não há júri no mundo que não considere sua culpa como uma conclusão precipitada.”

“Por que?” Edgar fez a pergunta de forma desanimada, incapaz de exprimir emoção. Ele nunca tinha se sentido tão cansado – tão completamente esgotado e vazio – em toda a sua vida. A cada palavra que o homem pálido pronunciava, uma queimação enorme se propagava pelos músculos de Edgar, e mesmo assim sua mente estava tão afiada quanto antes, desesperada para encarar aqueles olhos que ele conhecia tão bem.

“Por que o que? Por que você se distanciou da esposa que te amava? Não posso te ajudar nessa. Não que a resposta fosse mudar alguma coisa para qualquer de nós. Mas esse não é o ‘por que’ mais importante para você, é? Você quer saber por que isso está acontecendo com você, por que eu estou fazendo isso. Mas por alguma razão está com medo de me perguntar quem eu sou, e essa é a verdadeira pergunta por trás do ‘por que’. E eu devo dizer que você é quem deve responder isso por nós dois.”

O estranho retomou sua lenta marcha em direção a Edgar, de forma hesitante, enquanto cambaleava para mais perto. A mente de Edgar estava profundamente imersa em si mesma, tentando recuperar a memória de algo que ele tinha visto há muitos anos atrás, durante um passeio noturno pelo estacionamento a caminho do trabalho. Uma mariposa despedaçada, caída na base de um poste de iluminação. Qualquer legista sem dúvida teria dito que se tratava de um caso agudo de cabeçadas em um pequeno sol elétrico de plástico. Então veio uma brisa forte, que jogou a mariposa pelo ar, sacudindo e batendo asas, cruzando o caminho de Edgar através do estacionamento. Quando a brisa se foi, a mariposa voltou a ser um corpo totalmente em repouso. Assim como todas as coisas mortas deveriam estar, pensou Edgar, a menos que haja a intervenção de alguma força externa. Uma força invisível, no caso da mariposa. E, Edgar se lembrou novamente, no caso do homem parado diante dele. Porque em seus movimentos Edgar viu aquela mariposa claramente. Eram movimentos de algo que esteve vivo, mas que agora era guiado por uma força invisível totalmente diferente.  – uma força que podia apenas imitar de forma aproximada os movimentos do recipiente que agora controla. O vento foi a força que impeliu a mariposa de volta para uma versão distorcida da vida, mas qual seria a força que poderia fazer o mesmo com um homem?

Após um momento de silêncio, que pareceu se estender por horas, Edgar encarou os olhos pálidos e azuis do estranho, com as últimas fibras de coragem que lhe restavam. ”Morte?” Então um pouco mais seguro: “Você é a Morte.”

O estranho riu ruidosamente, e seu corpo magro convulsionava com o ritmo de sua gargalhada seca e chiada. A carne murcha de sua face se esticou, revelando gengivas negras e dentes brancos demais, na imitação mais grotesca de um sorriso que Edgar poderia imaginar. Assim que seu sorriso se desfez, o homem negro falou, enxugando lágrimas que não estavam ali. “Você me entendeu errado. Não era minha intenção parecer sombrio. Eu estava simplesmente pedindo que você me desse um nome. Esse corpo é uma aproximação. É o corpo que eu teria, se tivesse vivido o suficiente para crescer até ele. Mas os olhos, são a janela para a alma, é o que dizem, e eu esperava que você fosse se lembrar da minha. Mas eu te perdoo. Você só me viu por alguns momentos, e sob pressão. Mas você deveria me dar um nome. Morrer sem um nome foi a pior parte.”

Uma compreensão mais terrível do que qualquer medo começou a brotar em Edgar, e um calafrio geral tomou conta dele. O homem deu um tapinha gentil em seu ombro e se inclinou para perto, colocando dois quilos de aço gelado na mão de Edgar. “Eu te disse que eu era um mensageiro, e agora minha tarefa está cumprida. Mamãe me pediu pra te dar isso. Ela disse pra se apressar. Ela prometeu não ser muito dura com você se você voltar pra casa rápido.”

Edgar estremeceu, impotente. Seus olhos começaram a lacrimejar e arder, procurando por qualquer sinal de consolo nos olhos de seu filho. Ele moveu os lábios para falar, mas não encontrou palavras. A resposta às suas súplicas silenciosas veio no tom mais compassivo que seu visitante conseguia produzir. “Não é terrível aqui, é só...” A cabeça da coisa-cadáver pendeu para o lado, com um olhar bastante infantil nos pálidos olhos azuis. “Cinza. Lá é cinza. O tempo passa muito mais devagar, se é que passa. Eles te mostram coisas. Eles me mostraram tudo que eu iria aprender durante a vida que as suas ações me negaram.” Havia veneno na voz decadente agora, e Edgar sabia que puxar aquele gatilho por conta própria seria a única misericórdia que ele teria hoje.

O visitante se virou, tropeçando de forma desajeitada de volta para a escuridão no canto da sala, enquanto Edgar examinava o revolver carregado. Seu pretenso descendente tinha quase saído de vista por completo, e falou sem nenhuma emoção detectável. “Mais uma coisa. Depois que eles me cortaram, quanto tempo eu durei naquela incubadora? Ela não sabe, mas achei que você saberia. Eu tentei meu melhor para segurar as pontas, mas não deu pra aguentar muito. Quinze minutos? Vinte?”

Edgar ergueu a cabeça. Tinha as costas pressionadas firmemente contra o encosto de sua poltrona favorita, e seu corpo estava encharcado de sour. Ele encarou as trevas no canto da sala de estar, com os olhos lacrimejando, enquanto apontava, lenta e deliberadamente, um revólver para sua têmpora. "Dezessete", ele sussurrou para a escuridão.